19 dezembro 2012


Ela já chega perto da janela, mas só quando está no seu colo. Logo irá sozinha, pequenos passos apressados, mãos na moldura, ponta dos pés, o pescoço que se estica, atraída pelos gritos das crianças da escola que correm para a piscina quando autorizadas pelo professor. Mas ela só conseguirá ver o que imagina depois. À noite, as vozes das pessoas das ruas que se abrigam na Igrejinha ao lado, as conversas reais da violência da polícia, a vida desprotegida, sem mãe, sem pai, sem casa, sem útero.

Em breves momentos, depois do sono, ela move a cabeça na sua direção e olha pra você fixamente. Sem palavras, sempre sem palavras. E você olha de volta. E tenta ler o olhar dela: parece ter tomado consciência do mundo nesse instante, parece fazer um monte de perguntas mudas que infelizmente ficam sem resposta. Uma dessas perguntas parece ser: "Quem é você?". E depois os olhos desviam para o lado, só um pouco, não piscam, e diante deles, que às vezes veem, às vezes não, deve passar agora o filme da vida dela, não só as fraldas que foram trocadas há pouco, o choro impossível da tarde, mas também todo o passado ancestral, do útero, mas também anterior à capsula da vida, uma memória que é recente mas que logo será esquecida, para a frustração da humanidade, e, ironicamente, como todos os seres humanos, em um dia de adolescência ela virá com a pergunta: "De onde viemos?".

A dor. Há uma hora em que, nos seus braços, as pernas dela se contraem, a cabeça se abaixa e os braços se fecham. Você escuta um gemido antes do choro. Suas mãos seguram agora uma menina que tenta voltar ao útero, mas já não pode. Aqui fora: o frio da noite, o calor da tarde, o barulho repentino das coisas, e o desconforto da liberdade. Um longo caminho sem volta.


16 dezembro 2012


Cientistas dizem que ela foi feita para conquistar. Os braços que arqueiam em reflexo para frente, como se tentassem se segurar em você, numa repentina sensação de queda, tão comum aos bebês. As pernas que flexionam e tensionam no seu corpo, numa tentativa vã de resistir aos seus braços. Boca e olhos que de repente interrompem o choro e alternam movimentos lentos de dúvida, desconfiança, insegurança. É uma estratégia de sobrevivência. Não resistiriam sem a ajuda dos adultos. Por isso despertam a sensação de cuidado. E como isso funciona!





Manuela, dia 8.

10 dezembro 2012



Ouço o Trenzinho Caipira, de Villa-Lobos, as vozes do coral.




Sexta-feira, 30 de novembro. Manuela, Ano Zero. Dia Zero. Tempo de vida: cinco minutos. Os primeiros sinais de comunicação: o choro no colo da mãe, o choro parando, olhos se abrindo, uma mão aberta levantando. 

Contrações. Na casa, dormirá mais uma pessoa. À mesa, sentará mais alguém. Pegará o pão, tomará o leite, como se sempre estivesse presente ali. Mas tão pequena, tão pequena. Os pés não tocarão o chão. Os olhos fixos nos seus, nas conversas sobre cinema e literatura e política e músicas no violão. Mas onde será isso? Onde será isso? Brasília, Rio de Janeiro, Recife. Esse lugar, essa janela, será a primeira casa dela. Esse lugar indiferente pra nós vai ficar na memória dela para sempre. 

Contrações. Sete da manhã.

Contrações. Cinco da manhã.

26 novembro 2012



E de qualquer lugar não identificado, entre nuvens, monumentos e cerrado, você ouviu Cartola falando em versos, e como não tinha mais ninguém por perto, só podia ser mesmo pra você. E, de alguma forma, vinha dela:

“Quero assistir ao sol nascer, ver as águas dos rios correr, ouvir os pássaros cantar, eu quero nascer, quero viver..."